DORSAL ATLÂNTICA





Era final de 1999, uma época em que a internet ainda engatinhava no nosso país. Mas, no Underground (mesmo que Carlos Lopes não goste muito dessa palavra), a forma mais comum de se trocar ideias, saber o que estava acontecendo com as bandas, era através de cartas e dos fanzines. E foi assim que cheguei à Dorsal Atlântica, com um hiato de anos, afinal, naquela época, a banda já era uma espécie de lenda e de grandes feitos. Mas, para um cara do interior de Pernambuco, sem as facilidades tecnológicas que temos hoje, não era nada fácil conseguir materiais: discos, fitas, camisetas, essas coisas todas. O conhecimento adquirido era aos poucos, porém sólidos. Eu já era fã da Dorsal Atlântica antes mesmo de conhecer sua música, que vim a ter contato através de uma coletânea da revista Planet Metal. Lá estava a violenta “Caçador da Noite”, retirada de um disco ao vivo. O impacto foi fulminante. Corri, fui atrás de contato com a banda e alguns dias depois recebo a carta de Carlos Lopes... E, hoje, publico a primeira entrevista que fiz com essa lendária banda.

Recife Metal Law - Era final de 1999, com a Dorsal Atlântica com praticamente 20 anos de formação. Mas era uma época que não era fácil de ter informações de bandas do Underground e só nesse ano é que tive o primeiro contato com a banda. A Dorsal Atlântica nasceu ali, no Underground, e nunca se rendeu aos modismos. Pelo contrário, sempre foi contrária às tendências. Isso, para quem tinha uma forma parecida de pensar, era algo extraordinário. Carlos, tu tens uma noção do que é a Dorsal Atlântica para a vida de quem realmente ama essa banda?
Carlos Lopes -
O vínculo entre a banda e os apoiadores é uma relação que só pode ser entendida por quem a vive, é fato. E é lindo. Muito nos honra e esperamos contribuir de forma positiva. Montei a banda em 1981 para combater a ditadura militar e o servilismo cultural principalmente aos EUA. E tem sido assim desde então. Aos 18 anos eu não tinha a exata dimensão do que propunha, porque nem havia cena de Heavy Metal no país. Não havia Underground em 1981. Isso deve ficar claro, porque não se deve analisar o passado com a ótica de hoje. O Rio de Janeiro, então, era uma página em branco, não havia nada, nem professores de guitarra. Mas acreditei e contribuí para a construção de um novo ambiente de contracultura. As pessoas foram sendo conquistadas e em menos de dois anos - e antes mesmo do Rock In Rio em 1985 - já tínhamos um nome forte ligado à coragem e ousadia. Essas propostas permanecem assim desde então, mas hoje o “inimigo”, se assim podemos chamá-lo, está infiltrado em nosso próprio ambiente. Cabelo comprido, tatuagem, roupa preta, capas com sangue, caveiras e música agressiva podem ser usados também por nazistas e gente com ambição carreirista.

Recife Metal Law - Meu contato com a banda começou ali, como dito, em 1999, contigo respondendo rapidamente uma carta que enviei. Adquiri uma fita K-7 com a gravação do “Antes do Fim” e a camiseta pintada à mão do mesmo disco (depois diversos materiais com o próprio Carlos). Mas era um período em que a banda já estava “cansada” e pouco tempo depois você decidiu por encerrar as atividades. Teve muita coisa que cansou a banda e, principalmente, seu líder durante todos os anos. Mesmo assim, a Dorsal Atlântica permanecia firme, forte, passando por tudo que é obstáculo. Mas qual foi a gota d’água para que as atividades fossem encerradas (e essa pergunta tange ao lado pessoal)?
Carlos -
Éramos uma banda inviável para o mercado na segunda metade da década de 1990: queriam que gravássemos discos comerciais com clichês como “repetir os anos 80”; tínhamos péssimas condições de trabalho; a cena estava lotada com bandas cover e as autorais reproduziam fórmulas fáceis aceitas pelo próprio público. Criatividade era carta fora do baralho. Os músicos brasileiros cada vez mais devotados a perderem a identidade nacional para serem cópias. Fora o oportunismo, a politicagem. As bandas de Metal já pagavam para abrir shows internacionais... Era a cobra mordendo o próprio rabo, os valores estavam invertidos. Chamavam corrupção de “profissionalismo”, assim como ocorre até hoje. O humanismo fora de moda. E tudo isso antes da internet. Em 1997 havia definido que a Dorsal encerraria as atividades após um grande festival que não me cobrasse para tocar. Mas também estava determinado que quem nos conduzisse ao palco fosse o público e não a política de bastidores. 35 mil apoiadores assinaram um abaixo-assinado pedindo à produção do festival Monsters of Rock para que a banda tocasse, e assim foi feito. Tudo realizado na base do amor. Sendo assim, a partir de 2000, e após ter alcançado essa meta, coloquei a banda no “estaleiro”, e dediquei dez anos a tocar de tudo, estudar música brasileira, aprendendo e crescendo, para alimentar o meu próprio sonho de independência e contracultura.

Recife Metal Law - Viver de Heavy Metal, sem vender sua música de forma prostituída, é praticamente impossível no nosso país. Por essa razão, depois de anos dizendo que não mais voltaria com a banda, a Dorsal Atlântica apresentou um financiamento coletivo, através do Catarse, para gravar um novo disco. Essa, claro, seria a forma mais sensata de voltar a gravar com a banda, sem ceder a pressão de gravadora ou de quem quer que seja para fazer a música da forma que tinha que ser. A campanha foi um sucesso, porém uma parte das pessoas criticou essa volta da banda, assim como a forma como vocês usaram para obter recursos para gravar o álbum. Hoje esse financiamento coletivo é uma realidade e bastante usado. Mas a Dorsal Atlântica, como sempre, desbravou os caminhos, foi pioneira, recebeu críticas. Como você analisou as críticas na época e como as vê hoje?
Carlos -
Sobre o financiamento coletivo, deixei que o público escolhesse se deveríamos voltar ou não. E ele escolheu. Não somos aceitáveis para o mercado e nem o mercado nos interessa, por isso o financiamento coletivo é verdadeiramente democrático e socialista e se adequou a quem somos. É uma revolução e nós sempre fomos a resistência à obviedade. Quem acredita que os artistas só devem existir se tiverem um mecenas, um selo, uma editora, um suporte financeiro que abra as portas, tem uma visão de mundo diferente da minha. Todos nós temos medos, mas tenho tido mais certezas. Não nasci em berço de ouro e lutei, inclusive, contra minha família para construir minha visão de mundo e de vida. Curiosamente, começamos a carreira bancando o nosso primeiro disco com a venda de nossas coleções de selos e moedas e tocamos no festival Monsters of Rock em 1998 sem pagar ‘jabá’ graças aos nossos apoiadores. Sobre essa questão de ceder em busca de crescimento profissional, podemos analisar a própria história, inclusive internacional. Bandas europeias dos anos 70 para 80 só venceram nos EUA ao adaptarem o som para esse mercado mais lucrativo. Judas Priest, Rainbow, Scorpions, Def Leppard, tiveram que ceder. Isso seria prostituição? Creio que não. É uma escolha. Cada um sabe onde aperta o calo. E a minha escolha é outra. A história da Dorsal é linda e única e o que mais podem dizer? Que o certo é pagar para abrir shows e comprar espaço em grandes festivais? Que o certo é repetir fórmulas e viver a ilusão?

Recife Metal Law - Após o “2012”, a banda gravou mais três álbuns, entre outros lançamentos, sempre com o financiamento coletivo. Mesmo que seja algo financiado pelos fãs e que sabem que vão receber algo que os agradará, qual é a principal preocupação ao lançar algum material, em se pensando no público da Dorsal Atlântica?
Carlos -
Você colocou bem a questão: há o público da Dorsal, e não o público de Metal ou de cena. São coisas distintas. Na primeira campanha, em 2012, expliquei aos apoiadores que jamais me repetiria; que não contassem com isso, ou seja, quem apoiou nos deu carta branca. Disse à época que a banda só voltaria se a temática fosse explicitamente mais política e que a música fosse fruto de uma década de experimentações, de amadurecimento e de liberdade. Tudo ficou claro. Sem intermediários e concessões. E a campanha foi um sucesso. Já são dez anos de campanhas bem sucedidas e não há como reescrever essa história. Não foi e nem é um sucesso conseguido com concessões, mas é um bom combate espiritual, inclusive.

Recife Metal Law - Eu li comentários de muitos que esperavam que os novos discos repetiriam a fórmula dos primeiros álbuns da banda, até por ser cantados em português. Mas, não! A quadrilogia “2012”, “Imperium”, “Canudos” e “Pandemia” tem uma musicalidade muito rica. Claro, ao menos para mim, soam como discos de Heavy Metal, mas com muitas outras influências, seja nas partes vocais ou instrumentais. E mesmo que eu esperasse algo do tipo, por toda a história da banda de remar contra a maré, a primeira audição é sempre algo de impacto. Você já falou que pouco escuta Heavy Metal, e isso não agrada a muitos. Mas como é fazer Heavy Metal, trazendo para a música pesada influências de fora?
Carlos -
Essa é uma boa questão, mas pressupõe uma outra pergunta: o que significa “de fora”? Por acaso o Heavy Metal é um movimento “purista”, branco, limitado e colonizado? Um movimento que vive de clichês, do óbvio e do passado? Não foi bem assim que sonhei quando ajudei a criar esta subcultura neste país em 1981. Esse questionamento da pergunta já determina que a visão colonizada é superior à auto determinação dos povos. Para mim, o “de fora” é o que vem do exterior e não o que nasce em nosso próprio país, que nasce da nossa cultura mestiça, não-branca e terceiro mundista, como os ‘gringos’ tanto gostam de nos classificar para sermos rebaixados à condição de mão de obra barata e escravos. Outra questão: ajudei a construir as fundações do movimento no país e tenho uma visão de como ele poderia ser hoje, uma visão que não prosperou além de nossos apoiadores. E como ajudei a construir, também tenho todo o direito de desconstruir. Cada trabalho meu é uma desconstrução do lugar comum, assim como cada um é responsável por suas escolhas. Certas e erradas, escolhas movidas pelo medo ou pela impetuosidade. Sou artista, não trabalho em bolsa de valores. Falemos aqui sobre visão de vida e valores. Sou adepto da mestiçagem e da antropofagia, sou anti-globalista e humanista. A banda e meus trabalhos refletem essa visão. Tenho 60 anos e não 16. Não posso pensar com meu pênis.

Recife Metal Law - O mais novo disco da banda é o poderoso “Pandemia”. A começar pela capa, belíssima, que é um chute na cara do antigo governo e seus seguidores, a temática lírica, mesmo que, de certa forma, influenciada pelo livro “A Revolução dos Bichos”, traz muito da nossa atualidade. E não são letras fáceis. Pelo o contrário. Para entender todas essas letras, o principal é ter conhecimento de nossa história. Mas num país como o nosso, que esquece da história facilmente, qual o impacto que esse disco, em tua opinião, causa nas pessoas?
Carlos -
“Pandemia” não era para existir. O último disco da banda era o “Canudos”, mas em 2020, junto à pandemia, além de eu já estar desgostoso o suficiente com 58 milhões de brasileiros racistas e hipócritas, uma entidade, um escravo negro, me pediu que gravássemos o disco. E aí demos início a uma campanha de financiamento ganha em agosto de 2020 para gravarmos em novembro do mesmo ano. E não só George Orwell (autor de “1984” e “A Revolução dos Bichos”) é a iminência “parda” do disco, mas também todos os livros que li; os filmes que assisti e a própria vida que muito me ensinou em seis décadas. Sou apaixonado pela história do país. Quase fui professor, mas escolhi ser artista. A capa do “Pandemia” foi desenhada por Cristiano Suarez, que soube transmitir como ninguém o conteúdo do disco através dessa arte impactante. Sobre as letras, sei que o intelectualismo limita o entendimento, e eu não facilito, mas há muitas bandas, com outras propostas, e as pessoas têm o poder da escolha. O que peço a quem nos apoia é um pouco de entrega e discernimento ao terem contato com a obra. É uma troca saudável, enriquecedora e todo mundo sai ganhando. Pior é saber que neste país 98% das pessoas, ricos e pobres, de todas as etnias e classes não leem, não compram livros, mas sempre há dinheiro para cerveja, sexo, Jesus e alienação. Pior ainda é saber que “o torturado beija a boca do carrasco” e gosta... Como pedir a milhões sem trabalho que leiam livros?

Recife Metal Law - Outra coisa que por anos foi dita, era que a banda não mais voltaria a se apresentar ao vivo. Mesmo lançando discos, isso realmente foi cumprido por um logo período, até que, quase ao final da pandemia (NDE.: digo ao final, porque só recentemente a OMS decretou o seu fim), você voltou atrás e a banda voltou aos palcos. Quando a chama, para se tocar ao vivo, novamente acendeu em Carlos Lopes? O período de isolamento social, de alguma forma, influenciou na mudança de postura, com relação aos shows?
Carlos -
Parei de tocar em 2008 e a Dorsal estava inativa desde 2000/2001. E os motivos se referem a vários fatores explicados nas perguntas anteriores, grande parte deles filosóficos. A minha régua é filosófica e humanista e não carreirista. Mas decisões dependem da época em que são tomadas. Em início de 2012 a produção do festival “Maranhão Open Air” nos chamou para fechar a última noite tendo como bandas de abertura o Exodus e o Anthrax. Mas a Dorsal estava inativa e não quiseram nos pagar e nem fornecer a estrutura que merecíamos como profissionais. Mas o convite me fez crer que já havia ambiente para que a banda pudesse voltar em novas condições e essa nova condição foi o financiamento coletivo. Em 2012, também nasceu o meu filho, e refleti que a banda poderia gravar novos discos criativos, livres de cena ou mercado, e financiados pelo público. Para este país, um marco histórico. O “Pandemia” nasceu em 2020, não apenas devido à pandemia, mas ao governo anterior que teve - e ainda tem - milhões de adeptos amorais que se dizem morais, racistas assumidos e ignorantes orgulhosos. Então, em 2022, o Sepultura nos convidou para tocar ao vivo em novas condições, com estrutura e sem atender qualquer demanda comercial e de mercado. Mas para tudo isso, além de aguardar 20 anos, esperei que o meu filho completasse 10 anos. A turnê do “Pandemia” é um agradecimento a quem nos apoiou durante esses dez anos e para que o meu filho veja o pai tocando.

Recife Metal Law - Ainda sobre os shows, certa vez, conversando com um pessoal (entre eles o idealizador Paulo André), numa das edições do Abril Pro Rock, eu perguntei ao Paulo por qual razão ele não trazia a Dorsal Atlântica. Ele me disse que praticamente todos os anos falava contigo para que a banda tocasse no festival, mas a resposta era sempre negativa. Eis que agora a banda retorna à Pernambuco, após quase 30 anos. Eu, pela primeira vez, verei a banda ao vivo. O que eu, quem já viu a banda ao vivo e todos os demais podem esperar da Dorsal Atlântica no Abril Pro Rock?
Carlos -
A Dorsal Atlântica é uma família, uma comunhão. E este show em Recife não ocorre a toa, tem uma história própria. O repertório será calcado nos quatro últimos discos, com a inclusão de quatro ou cinco faixas antigas, e em cada show há uma surpresa musical. Além de eu só tocar guitarra baiana. Lembremos do CD tributo a Dorsal chamado “Resistiremos” somente com bandas cearenses. É uma honra imensa, mas também é fruto de uma convicção pessoal que tem resistido há mais de 40 anos. E curiosamente é o segundo tributo à obra, ambos tributos cearenses. Quem salvou o país do fascismo na última eleição? O Nordeste! E sobre o que o produtor Paulo André falou é a verdade: recusei o convite por décadas porque a minha primeira motivação não era voltar com a banda, mas adquirir auto-conhecimento. Para isso, caí, me ergui, fali, me deixei enganar, fui mal interpretado e segui a minha ‘via-crucis’ entre os mundos material e espiritual, tendo ótimos músicos e amigos que me apoiaram nesses momentos difíceis, mas necessários. Sobre o Abril Pro Rock, em 2023 há explicações racionais e há a que prefiro: a consciencial. Por que um festival com o nome “Abril” ocorrerá em maio? Essas são as minhas explicações: tocaremos em 13 de maio, data da abolição dos escravos e da Virgem de Fátima, uma forte conexão desde Portugal, quando gravamos o “Straight” em 1996. Teríamos shows no dia seguinte, que foram cancelados, e isso me liberou o dia 14, que “por acaso” é dia das mães e minha mãe, hoje desencarnada, nasceu em Olinda, meia hora de Recife. Amém.

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Entrevista por Valterlir Mendes
Fotos: Divulgação, Dani Dread, Barbosa Thiago, Billy Albuquerque, Cadu Ribeiro, Jorge Lean